quarta-feira, 15 de abril de 2009

CELSO FURTADO, UM BRASILEIRO EXEMPLAR

* Leon Bevilaqua

-I-
O nascimento e a morte


A espécie humana vive assediada por males que, em sua maioria, são provocados pelo próprio homem. Por isso é tão importante falar-se das pessoas exemplares, dos que sacrificam suas vidas em benefício de seus semelhantes. Numa época em que o neoliberalismo ainda pontifica, embora já desacreditado e chamado por muitos de neocolonialismo, acarretando males terríveis aos povos dependentes, convém lembrar o nome e a obra de Celso Monteiro Furtado. Ele foi pensador rigoroso que morreu após infarto em sua casa no Rio de Janeiro, na manhã de 20 de novembro de 2004, aos 84 anos, após haver desvendado as causas e conseqüências da secular má gestão do Brasil. Deixou viúva a jornalista e tradutora de obras literárias em espanhol, francês e itailiano, Rosa Freire D’ Aguiar, que em mais de 20 anos do final de sua vida muito o influenciou em suas atividades intelectuais.
Celso Furtado,filho de magistrado e de família adepta da meritocracia, nascido na pequena cidade de Pombal, no sertão árido paraibano, em 26 de julho de 1920, era mais patriota do que nacionalista, tendo cativado leitores do mundo todo com sua prosa erudita e articulada, direcionada para fazer a melhor exposição possível da problemática econômica de sua época.

-II-
O episódio da cassação


Segundo Francisco de Oliveira, sociólogo e assessor de Celso por alguns anos, a dignidade de Celso prescindia, e mais, se horrorizava com os procedimentos de auto-heroização. Ela era tão contundente frente aos padrões predominantes no Brasil que mal se pode acreditar.
Ainda de acordo com Francisco, nos fecundos anos em que trabalhou sob a liderança de Celso, presenciou desde o gesto aparentemente insignificante de partilhar o mesmo quarto num hotel na Bahia, para não estimular gastos perdulários com dinheiro público, até a sua firme e decidida reprimenda ao golpista general Justino Alves Bastos.
No Recife, na aparente calma da tarde de 1° de abril de 1964, aquele militar comandante do quarto exército se queixou ao próprio Furtado de que esse não havia colaborado no transcorrer da tomada do poder pelos militares.
Celso respondeu sem bravatas que era um servidor público, que o exército não solicitasse sua colaboração para um golpe de estado que havia destituído o governo legitimamente eleito, o que repugnava às suas convicções republicanas; logo ele que fora oficial voluntário da FEB.
Desta áspera conversa, o nome de Celso saiu para a primeira e nefasta lista de cassações de direitos políticos.
Poucos cientistas sociais podem se orgulhar de terem visto suas idéias transformarem-se em força social e política; a obra de Celso Furtado passou por essa dura prova da história.
Há a possibilidade, de na sua hora final, Celso ter pensado com amargura no destino da nação à qual dedicou o melhor de suas forças e de seu talento. Nós, seus discípulos, sabemos que nada foi em vão, que suas idéias continuarão a fecundar os intelectos brasileiros, possibilitando ao nosso povo conquistar seus direitos. Nosso futuro será invejado e não composto por ruínas.


-III-
O prestígio e a austeridade


Era tal o seu prestígio que, mesmo após ter sido cassado pelo regime militar de 1964, estando no exílio, seus livros eram adotados pela Universidade de São Paulo nas décadas de 60 e 70 do século passado. Seu livro mais conhecido, Formação Econômica do Brasil, de 1959, editado até hoje pela Companhia Editora Nacional, tornou-se um clássico do qual ainda se recomenda como importante a leitura, tendo sido traduzido e publicado em mais de 50 países.
As vicissitudes que levaram o professor Furtado a passar mais de metade da vida no estrangeiro, fizeram-no perceber e escrever a respeito da posição do Brasil no quadro internacional. Sabia que suas habilidades como caçador de votos eram limitadas e nunca chegou a levar adiante um projeto político.
Ele foi o criador da SUDENE no governo JK, ministro de João Goulart- em 1963, ministro da cultura de Sarney – em 1986, titular de uma cadeira na academia brasileira de letras desde agosto de 1997, jamais tendo requisitado jatinhos para viagens particulares ou cogitado ir até a televisão para levar adiante projetos pessoais. Também nunca fez nenhum tipo de serviço para empresas, nem mesmo pareceres. Íntegro, austero, nunca se deixou seduzir por idéias da moda ou eventuais recompensas pessoais.
Não há dúvida, até a atualidade, Celso é o economista mais importante do Brasil, um homem que pensou com grandeza no desenvolvimento da pátria. Foi um brasileiro marcado pela coerência, pelo compromisso com o desenvolvimento e, por conseqüência, com o bem do povo.



-IV-
Palavras amargas


Mesmo quando modificou diagnósticos ou retificou suas propostas, manteve sempre fidelidade ao seu ideal, de elaborar um pensamento voltado para a ação. Acreditando que as reformas das estruturas levam com mais certeza ao aperfeiçoamento das instituições, optou por uma proposta reformista, de um desenvolvimento econômico socialmente justo. Não considerar este propósito impediria avaliação mais correta do intelectual e sua obra.
Pela gentileza no trato, dificilmente falava palavras amargas, mas ao constatar a nefasta privatização empreendida por Fernando Henrique Cardoso não se conteve e proferiu as seguintes palavras:
“O momento histórico era o começo do governo Fernando Henrique. Faltou imaginação política ou coragem cívica, não sei. Reconheço que ele não esteve à altura do desafio que o Brasil enfrentou. A menos que se diga que faltou a ele percepção da grandeza histórica do momento.” Em novembro de 2001.
Segundo Celso, “Fernando Henrique Cardoso quebrou o Estado e endividou o país até as orelhas.”



-V-
Sem máculas


Como se vê, Celso não foi um economista com as máculas de muitos dos economistas da atualidade, ou seja, não foi fascinado pela economia de mercado, nem teve carreira puramente financeira. Ele sempre acreditou que nosso povo será capaz de fazer de nosso país uma nação digna e civilizada. Sabia da importância do brasileiro, tanto que foi o primeiro economista a dizer que sem cultura não há identidade.
Muitos acreditam que as idéias de Celso, a partir de sua morte, terão repercussão ainda maior do que em sua honesta e densa vida. Nós o perdemos, mas é preciso que guardemos seus ideais.


-VI-
“O Longo amanhecer” –um filme biografia


José Mariane, cineasta brasileiro de talento realizou o documentário “O longo amanhecer”, traçando perfil aprofundado do economista paraibano.
O filme contou com rico material de arquivo, reconstituindo a época de atuação de Furtado.
A espinha dorsal deste documentário está numa longa entrevista feita com Furtado em 2004, cinco meses antes de sua morte.
Apesar da voz vacilante, Furtado mostra-se perfeitamente lúcido, discorrendo sobre seus temas da vida inteira, principalmente a necessidade do Brasil superar as desigualdades sociais em sua rota de desenvolvimento.
A avaliação da obra de Furtado é feita através de entrevistas com intelectuais como Francisco de Oliveira, João Manoel Cardoso de Mello, Antônio Barros de Castro e outros.
As participações mais apaixonadas vêm da economista Maria da Conceição Tavares, que enfatiza a importância do legado do mestre, a quem chama carinhosamente de “velho”.


-VII-
Uma metáfora



Finalizando, para aqueles que ainda se iludem com as belas e falsas palavras do neoliberalismo, queremos transcrever aqui uma impressionante metáfora que mestre Celso Furtado nos deixou, por ser ainda válida:
“As grandes empresas, com suas técnicas avançadas e maciças concentrações de capital, têm o mesmo efeito nas economias subdesenvolvidas que aquelas enormes e exóticas árvores que sugam toda a água e secam uma área inteira...” Por conseguinte, conclui Furtado, “na América Latina o desenvolvimento não pode ser o simples resultado de forças atuantes do mercado. Só uma política consciente e deliberada do governo pode realmente levar ao desenvolvimento.”
Diante desta e muitas outras razões, torna-se evidente que os estados latino-americanos e africanos não podem ser mínimos, como receitam os neoliberais, a não ser que se tenha por objetivo para eles a subordinação e a miséria.


Notas:

¹ Celso furtado, em sua patriótica luta contra a Alca, afirmou que ela ameaçava até mesmo a integridade territorial do Brasil. Os tucanos lutaram muito para que nós fôssemos integrantes da Alca. FHC- em 2001 no Canadá, em reunião preparatória para o estabelecimento da Alca, assegurou aos representantes dos demais países das Américas que nós dela, em breve, passaríamos a ser membro. Esta aberração contra os interesses nacionais só não se concretizou graças ao firme trabalho de Lula, a partir do seu mandato presidencial iniciado em 2003.

² Sabe-se que uma das características fundamentais de um clássico é a possibilidade de infinitas e renovadas leituras. "Formação Econômica do Brasil", vinda a público em janeiro de 1959, 50 anos depois de sua publicação- em 2009- já havia se tornado clássica. Neste ano, ganhou sua primeira edição comemorativa, organizada pela viúva de Celso Furtado, Rosa Freire D'Aguiar Furtado. A introdução dessa edição foi feita por felipe de Alencastro, velho amigo de Celso Furtado. Esta edição comemorativa, em seu conjunto, reune, além do texto de Celso Furtado, a fortuna crítica que se seguiu ao aparecimento da obra que é um dos mais importantes livros de história econômica já escritos. Esta edição foi editada pela Companhia das Letras.

³
a) Em 27/03/2009, foi inaugurada a Escola Municipal Celso Monteiro Furtado - no bairro João Paulo Segundo, em João Pessoa, Paraíba.

b) Em 25/09/2009, No Edifício do BNDS, no centro da cidade do Rio de Janeiro, foi inaugurada a biblioteca Celso Furtado. Ela é digitalizada, tendo aproximadamente 7500 títulos de livros, uma videoteca com entrevistas de Celso Furtado e filmagens dos cursos e seminários realizados pelo Centro Internacional Celso Furtado. Todas as 3 bibliotecas pessoais de Celso Furtado foram transferidas para a biblioteca do prédio do BNDS.

c) O navio petroleiro Celso Furtado foi lançado ao mar em 24 de junho de 2010, sendo a primeira encomenda da Petrobrás ao estaleiro fluminense Mauá, situado em Niterói, próximo à ponte do Rio Niterói. Ele é o casco de número 199 do Estaleiro. Segundo afirmação do presidente Lula, em maio de 2010 - por ocasião do batismo do petroleiro João Cândido, em Recife, ele mesmo escolheu o nome Celso Furtado para o navio de transportes da Petrobrás. Segundo alguns, é um tanto atípico um presidente da República escolher nomes para navios.

d) As recentes homenagens prestadas a Celso Furtado, refletem a revalorização do seu pensamento após a derrocada do pensamento neoliberal evidenciada nas fases da crise econômica manifestadas após 2008.

e) Em 1997, a Editora Paz e Terra publicou, em três volumes, a autobiografia de Celso Furtado. Esta obra possibilita conhecer o perfil de grandes políticos contemporâneos de Celso Furtado, entre eles Juscelino Kubstchek e o Tucano Fernando Henrique Cardoso.

*Economista formado pela USP