quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Um livro sem capa - Recordações de um bibliófilo


* Leon Bevilaqua


Já estamos no início do terceiro milênio, vivendo sob o governo desenvolvimentista e amigo do povo de Dilma Rousseff. A situação econômica dos brasileiros melhorou significativamente e as carências são menores, diferentemente da condição de muitos desses brasileiros na infância.
Há sessenta anos, o acesso a livros era raro, e os que haviam eram quase todos impressos em papéis ruins, sem qualidade minimamente satisfatória. As cidades não tinham bibliotecas públicas como hoje, não havia livros digitais e o preço alto fazia com que o produto fosse, na prática, um artigo de luxo. Quando criança, sentia-me privilegiado por ter livros de Monteiro Lobato e alguns clássicos de literatura de língua portuguesa, entre eles Machado de Assis e Eça de Queiroz.
Soube, alguns anos após essa época, que uma família amiga tinha apenas um livro em casa, herança que uma jovem dessa família recebeu de um tio seu. Ele não tinha capa nem as páginas iniciais, de forma que a moça não soube o nome do autor e da obra. Foi assim que ela teve o prazer de conhecer a literatura.
Tempos depois, para ter acesso a livros, uma vez que a maioria das escolas não tinha bibliotecas, as crianças que gostavam de ler tinham que pegar ônibus e ir até as bibliotecas circulantes. Isso quando tinham a sorte de habitar cidades que tinham essas bibliotecas.
Os momentos dentro dos ônibus foram classificados por muitos, já não mais crianças, como inesquecíveis. Muitos continuam correndo atrás dos livros até hoje.
A jovem minha amiga, do livro sem capa, teve uma juventude difícil e carente. Casou-se com um rapaz que, na triste década de noventa do século passado, perdeu o emprego e, para garantir o sustento da família, montou uma banca de camelô. A amante dos livros acabou substituindo o marido na banca, que foi transformada em ponto de troca de livros. Mais tarde ela teve uma banca de jornal que em pouco tempo virou um sebo.
A mulher foi trabalhar em uma escola como monitora de alunos e, logo depois, conseguiu um emprego na biblioteca da escola. Neste trabalho, combateu a fama de que as bibliotecas são ambientes que cheiram mal.
Não sei o que aconteceu a essa amiga minha, pois tomamos caminhos diferentes. O certo é que em comum tínhamos o amor pelos livros. Eu cultivo o amor à leitura em minhas filhas e ela nos seus filhos.

Notas de um bibliófilo:

  1.   Bibliotecas são espaços reservados para a produção de conhecimento, o que se obtém através da ação/leitura. Para tanto, ela deve ser incentivada. Nesse sentido, é importante que as bibliotecas sejam ambientes abertos, dinâmicos e agradáveis.
  2.    Estimular a leitura não cabe apenas aos professores de língua portuguesa e de literatura. Instigar estudantes a ler é uma tarefa que deve começar em casa com os pais, e que deve continuar com todos os professores, do ensino infantil até as universidades.
  3.    Obras contemporâneas são importantes, mas nunca se deve deixar de lado os clássicos. Detalhes de épocas passadas, diferentes estilos de escrita, e o mais surpreendente: uma obra antiga pode ser mais atual do que se espera.
  4.     Leitura não é algo que deve ser instigado e cultivado apenas dentro das escolas. Diferentemente do que muitos pensam, muito além de formar alunos leitores, devemos ajudar crianças e adultos a encontrar o prazer que a leitura é capaz de proporcionar.
  5.    Conforme dados do IBGE de 2009, 378 municípios brasileiros não tinham bibliotecas públicas naquele ano. Só no Estado de São Paulo, eram 26 cidades.
  6.   Até hoje, em muitos lares brasileiros, não há um só livro. Seria extremamente positivo que na cesta básica alimentar recebida pelos trabalhadores mais pobres, houvesse a surpresa de um livro. O fato da cesta básica levar um livro para o trabalhador uma vez por mês, possibilitaria que tais pessoas e suas famílias formassem em casa uma pequena biblioteca, uma forma criativa de aproximação com livros. Esta é uma ideia defendida por gente generosa, mas que precisa ser suportada principalmente pelo Estado. Uma outra forma de aproximação com os livros seria as entidades empregadoras passarem a dar livros a seus empregados nas datas festivas, como aniversário, natal e outras.
  7.    Para bons bibliotecários, mais importante que a biblioteca ter um bom acervo e boa estrutura, é o público usufruir. Se o acervo ficar guardado, sem uso, não adianta nada ter.
  8.    "O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado". Mário Quintana em O caderno H.
  9.     "Os livros têm os mesmos inimigos que o homem: o fogo, a umidade, os bichos, o tempo; e o seu próprio conteúdo". - Paul Valery.