quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Algumas reflexões brasileiras no 1º centenário da morte de Leão Tolstói

Leon Bevilaqua


Estamos vivendo no ano do 1º centenário da morte de Leão Tolstói, ocorrida em 1910. Tornam-se oportunas algumas reflexões sobre sua vida, sua obra, seu pensamento e atualidade.
Sua obra, por ter grande amplitude e variedade de gêneros - o conto, a novela, o romance, o teatro, a doutrinação estética, social e moral, abrange algumas milhares de páginas. Mas até hoje, ao levarmos adiante a leitura de seus escritos, os ganhos estão assegurados.
Ele foi o criador do quadro mais vasto e grandioso dos destinos da vida humana. Isto jamais ocorreu nas línguas modernas, depois das epopeias gregas e latinas.
Guerra e Paz, seu livro mais importante, foi publicado entre 1865 e 1869 em um periódico da época. Ele foi escrito na temporada mais feliz da vida de Tolstói. É um painel imenso das alternativas da paz e da guerra, um romance notável, acoplado a muitas considerações úteis até hoje aos que aspiram escrever obra de arte ou não.
Sobre o adultério e suas decorrências, jamais alguém falou com mais propriedade que ele em Anna Karenina (1875) e Sonata a Kreutzer. Este último livro é um libelo contra o casamento, nele se manifestando pela primeira vez em sua obra - com pujança- a ideia moral que preside a segunda e última fase de sua obra. Essa segunda fase é por muitos considerada sombria. Nela estão relacionados como principais os seguintes livros: 1º A morte de Ivan Ilitch – de 1886- um de seus trabalhos mais perfeitos do ponto de vista artístico. É um relato comovente em que as ideias de Tolstoi não aparecem de uma forma explícita, mas são sugeridas graças à mestria das análises psicológicas. Entre os temas abordados no desenrolar dessa história de um homem que agoniza em meio a tremendos sofrimentos, destacam-se os seguintes: a mediocridade da vida burocrática, o orgulho e a tentativa de exclusão dos mais pobres, as desilusões e hipocrisias no casamento e a angústia perante a proximidade da morte. Mas o grande tema abordado, sem dúvida, é o conflito entre a ciência e as verdadeiras necessidades e aspirações do ser humano. 2º Sonata a Kreutzer – de 1890- um livro que nos fala de ciúme, violência e hipocrisia – é a primeira de suas obras francamente doutrinárias; 3º Ressurreição - de1899- este livro foi lançado pouco mais de dez anos antes de Tolstoi morrer, foi seu último romance. Na época em que foi publicado, o autor, já famoso, era mais conhecido pelas críticas sociais e religiosas do que propriamente como escritor de ficção. Ressurreição é um dos melhores romances de todos os tempos, demonstra a interdependência entre privilégio e violência através de um preciso desvendamento das relações de poder na sociedade.
É texto impregnado de espírito evangélico, um libelo contra a justiça dos tribunais russos da época em que viveu o autor. Leitura de utilidade para os diversos profissionais das lides jurídicas, é obra em que o mestre russo fala muito de dinheiro e também dos feitos dos advogados para obtê-lo para seus clientes. A leitura desta obra é uma oportunidade valiosa de passarmos a entender mais da atualidade em que vivemos. Só um escritor que amasse profundamente a humanidade poderia tê-la escrito.
Quando se trata de autores como Tolstói, todos os seus trabalhos são importantes, principais, inclusive os que alguns consideram menores, como - De quanta terra precisa o homem?- texto pertencente às suas lendas populares. Nestas poucas páginas, Tolstói nos fala dos contrastes da vida rural e urbana, da ganância humana sempre em busca da posse da terra para ter símbolo de status e domínio social.
As lutas terríveis e assassinas pelas terras das novas fronteiras agrícolas brasileiras- (Pará, Mato Grosso, Roraima e outros) – nos evidenciam a utilidade da leitura e análise de textos pertinentes e oportunos como esse.
Muito do pensamento de Tolstói foi mal recebido pela Igreja Ortodoxa Russa, pois ele questionava a necessidade de existência do corpo clerical, criticando fortemente a aproximação da Igreja em relação ao Estado. O comportamento nada ético de muitos clérigos da Igreja Católica e algumas seitas evangélicas nas eleições brasileiras de 2010, nos fez ter cogitações semelhantes às de Tolstói. Nestas eleições, até o Papa teve comportamento nada recomendável, ao tentar dar sustentação ao candidato presidencial mais antiético.
Afortunadamente o povo brasileiro manifestou, uma vez mais, o seu bom senso. O resultado das eleições foi favorável às forças desenvolvimentistas ligadas aos interesses populares. No plano federal, foram derrotados os equivocados privativistas e entreguistas pelos quais tantos setores clericais torceram e trabalharam desde antes do golpe de 1964.
Tolstói foi um mestre do realismo e várias de suas observações gozam de indiscutível perenidade. Eis aqui três delas:
1ª) “ Um estadista honesto e virtuoso é uma contradição interna tal como uma prostituta casta ou um alcoólatra sóbrio”.
Quantos dos políticos atuais brasileiros desmentem essa constatação do pensador russo?
2ª) “ Os ricos fazem tudo pelos pobres, menos descer de suas costas!”
3ª) “ Se queres ser universal, fale de tua aldeia”. Ou seja, para ser universal, é preciso somente estar atento ao seu mundinho particular.
Lenin, no artigo “Lev Tolstói como espelho da revolução russa”, sublinha o papel do escritor como um denunciador dos maiores males e chagas da sociedade capitalista. Como Tolstói, apesar de suas brigas com o clero ortodoxo russo era um místico idealista procurando reencontrar a caridade do cristianismo primitivo, Lenin concluiu seu artigo falando do atraso de Tolstói em relação a determinadas questões.
Tudo indica que, assim como as grandes epopeias gregas e latinas atravessaram os milênios, também a obra monumental de Tolstói conseguirá tal feito. Em todas as fases de seus trabalhos, Tolstói foi vigoroso na descrição dos detalhes e na animação dos grandes afrescos históricos e sociais. A exemplo de outros mestres da literatura, em todas as histórias que contou, o dinheiro é o personagem principal.
Finalmente, queremos reiterar aqui a importância da maior parte do pensamento de Tolstói, sua leitura historicamente útil, proveitosa; mesmo quando abordando utopias com as quais todos um dia sonhamos e que jamais serão realizadas.

Notas:
1) No 1º centenário da morte de Tolstoi, parte dos russos pede que a igreja ortodoxa russa perdoe o autor de Guerra e Paz, anulando sua excomunhão de fevereiro de 1901.
2) Já bastante conhecido e afamado, tendo já escrito sua obra-prima Guerra e Paz, Tolstói, após uma doença, durante cuja convalescência teve oportunidade de ler Shakeaspeare,Molière e outros grandes dramaturgos, resolveu escrever também para o teatro. Na extensa obra de Tolstói, é o seu teatro parte pequena. Ele o escreveu depois dos 58 anos e não são mais que cinco peças.
*Relação das cinco peças teatrais escritas por Tolstói*

1ª)O poder das trevas - drama em 5 atos
2ª)O cadáver vivo - drama em 6 atos
3ª)Os frutos da civilização - comédia em 4 atos
4ª)O vagabundo - comédia em 2 atos
5ª)O mujique e o operário - comédia em 6 quadros

Existem adaptações de textos de Romances, contos e novelas de Tolstói para peças teatrais. Algumas destas adaptações são originadas em parte do texto de Guerra e Paz e outras narrativas. Senhor e Servo originou uma bela peça teatral.
“E uma luz brilha na escuridão”- é uma bela peça baseada em texto de Tolstói, que deverá ser encenada na Alemanha e na Rússia dentro em breve. A peça aborda o tema de como se deve viver de fato.Compartilhar tudo, dar tudo que se possui conforme pretendeu fazer Tolstoi em sua velhice, ou seria o caso de cuidar de si mesmo. Se pensarmos na crise econômica e nos salários dos executivos, o tema é bastante atual. Ele tencionava dar seus valiosos bens no fim de sua vida, mas foi impedido por pressões de sua esposa, familiares e amigos. Por não ter feito tal doação, após sua morte, foi classificado como hipócrita por seus detratores. Eles não levaram em conta o fato de que o escritor destinara boa parte dos direitos autorais dos livros que escreveu a atos humanitários, inclusive os direitos do livro Anna Karenina.
3) O cineasta Serguei Eisenstein disse que “Anna Karenina” era de um moralismo feroz, e é verdade, é uma condenação do adultério. Ao mesmo tempo, apresenta uma compreensão, uma capacidade de transmitir os nuances, os sentimentos humanos, diante das quais essa finalidade inicial quase desaparece. Anna Karenina foi considerada por Dostoievski, em seu DIÁRIO DE UM ESCRITOR,"uma obra de arte perfeita".
4) Alexander Tolstói, bisneto de Leão Tolstói-(1828-1910)- participou - no fim do ano de 2010 - de atividades em Montevidéu que lembraram a morte do escritor russo há cem anos. Ele forneceu aos organizadores do evento abundante material fotográfico e bibliográfico entre outros. “Quando Leão morreu, o mundo chorou a morte de um dos maiores escritores, mas também de toda uma autoridade moral” – disse o descendente que há oito anos reside em Punta del este, a cerca de 140 Km de Montevidéu.
5) A atriz britância de origem eslava Helen Mirren defendeu as ideias de Tolstói ao afirmar, no 1º centenário de sua morte, que “qualquer Deus teria aceitado em seu céu o escritor russo”- excomungado desde 1901 por suas críticas à igreja ortodoxa. “Afinal de contas, sempre foi querido pelas pessoas, mas não pelo governo”, afirmou Mirren que recentemente interpretou Sofia, a esposa do autor no filme “A última estação” de Michaell Hoffman.
6) O pacifismo messiânico de Tolstói deixou uma boa marca na História: Mahatma Gandhy foi um dos seus mais ilustres discípulos, como também Martin Luther King. Gandhy e Tolstói trocaram cartas. É nítida a influência do pensamento de Tolstói na longa vida política de Gandhy. A correspondência entre Tolstói e Gandhy duraria somente um ano. De outubro de 1909 a novembro de 1910.
7) Minha vida – As memórias de Sofia Andreevna Tolstaia – esposa de Tolstoi – é um livro lançado em inglês em maio de 2010 pela Otawa University Press – sem tradução ainda para o português. Sofia, inicia sua narrativa contando sua infância.
8) Tolstói -em Guerra e Paz -foi acusado pelos críticos da época de embaralhar fatos e ficção.
9)Para teólogos como Leonardo Boff- O Reino de Deus está em vós (1878) – é um dos livros mais importantes que Tolstói escreveu, tendo influenciado Gandy e Martin Luther King.
10) Guerra e Paz é a grande epopéia da nação russa. Ela se refere a um importante período histórico, de cerca de quinze anos- de 1805 quando ocorreu a primeira guerra entre a Rússia czarista e a França de Bonaparte, a 1820 quando se tornaram perceptíveis os sinais da insurreição dos dezembristas. São quinze anos de história da Rússia repletos de acontecimentos decisivos. O ambiente agitado é o cenário em que viveram as personagens do romance.
11) Tolstói, está fora de dúvida, foi um homem que em toda sua vida procurou com zelo fanático a verdade. Daí decorreu o caráter autobiográfico de sua obra que acompanha todas as vicissitudes de sua vida. Guerra e Paz, um trabalho menos autobiográfico, é sua obra mais objetiva, mas também corresponde a uma fase de sua biografia, a época feliz do casamento, da vida de grande senhor rural e grande escritor. Ressurreição é o apogeu da “ literatura de acusação contra o sistema político e social russo”, contra as colunas da sociedade russa. Em 1898, no mês de setembro, Tolstói visitou uma prisão, coletando dados para escrever Ressurreição. Em 1900 - janeiro, recebeu visita de Gorki, que dele escreveu: " Agradou-me; é um verdadeiro homem do povo".
12) Tolstói, como muitos outros bons escritores, produziu uma obra prima atrás da outra, mas morreu sem ganhar o prêmio Nobel.
13) Tolstói nasceu em 9 de setembro de 1828- em Iasnaia Poliana, uma propriedade rural de sua família, a cerca de duzentos quilômetros de Moscou, onde viveu quase toda sua vida. A mansão existente nessa propriedade é muito bem cuidada até hoje pelo estado russo. Seu túmulo fica nessa propriedade. É notável a simplicidade das acomodações ocupadas por Tolstói em vida.
14) Algumas outras frases notáveis de Tolstói:
No fim do caminho está a liberdade. Até lá, paciência.
Há quem passe pelo bosque e só veja lenha para fogueira.
Dizer que vai amar uma pessoa a vida toda é como dizer que uma vela continuará a queimar enquanto vivermos.
Não existe grandeza onde não há simplicidade, bondade e verdade.
Não se pode ser bom pela metade.
A vida matrimonial lembra uma barca que conduz duas pessoas em águas tempestuosas. Se qualquer uma das duas faz movimentos muito bruscos, a barca afunda.
As famílias felizes parecem-se todas; as famílias infelizes são infelizes cada uma à sua maneira.
A razão não me ensinou nada. Tudo o que eu sei foi-me dado pelo coração.
É no coração do homem que reside o princípio e o fim de todas as coisas.
... a verdade é que tudo neste mundo, exceto Deus, é uma brincadeira.
15) Se compararmos o livro Anna Karenina com Guerra e Paz, constata-se que é um romance de estrutura mais afinada com a dos romances modernos, sem as longas digressões da obra anterior, com um núcleo dramático mais definido.
16) Chopin era o compositor preferido de Tolstói. Sonata a Kreutzer, no entanto, é um livro dele homônimo de uma peça musical de Beethoven.
17)Tolstói estudou música e se converteu em pianista. No capítulo VI do livro Primeiras reminiscências e recordações - de sua autoria - ele nos fala que tocava com sua amiga e parenta Tatiana Alexandrovna Ergolskaia, a quatro mãos, tendo se surpreendido com a segurança e a técnica de sua execução. O pai de Tolstói falava alemão e ele também. Tinha sotaque saxão, como seu preceptor alemão na infância. Como ser dotado de significativa inteligência e assimilação rápida, Tolstoi aprendeu várias outras línguas. Chegou a escrever fluentemente em francês e inglês, tendo, inclusive, mantido correspondência com intelectuais dessas duas línguas. Dominou o grego de tal forma que suas traduções eram mais perfeitas do que a de professores daquela língua clássica.
18) Tolstói foi casado por 48 anos. Deixou viúva Sofia Andreevna Tolstaia, que dele engravidou 15 vezes.
19)Tolstói entendia de muitos assuntos, como demonstrou ao longo de sua obra. No livro Khadji Murat, por ele planejado por tanto tempo e publicado em 1912, após sua morte, o grande assunto por ele abordado com competência foi a rivalidade. Rivalidade não só entre dois homens - Khadji e Chamil - mas também entre povos. Após a leitura desta curta novela ficam algumas conclusões: Khadji Murat é uma das melhores novelas até hoje escritas, sendo fundamental para que se compreenda o percurso de Tolstói ao longo de sua obra. Tolstói foi homem de intensas leituras. "Fausto", "Dom Quixote" e "Os Miseráveis" foram consideradas por ele obras muito importantes. Em carta a um amigo, afirmou: " ... de todas as ciências que o homem pode e deve saber, a principal delas é a de viver fazendo o mínimo possível de mal e o máximo possével de bem". Tolstói foi um moralista e, sendo assim, deve ser compreendido e louvado.
20) Os descendentes de Tolstói vivem em 25 países. São mais de 350 pessoas. Entre os países em que eles residem, relacionam-se os seguintes: Rússia, França, Itália, Suécia, EUA, Grã Bretanha, Uruguai e Brasil.

2 comentários:

Flávio Bevilaqua disse...

Adorei esse texto!
Acredito que a filosofia deve se realacionar a questões políticas e sociais. Nenhum estudo é completo, mas juntando os diferentes tipos de conhecimento, podemos formular tendências e tornar esse mundo melhor, com mais esclarecimento sobre as complexas condições da sociedade, seus problemas, suas aspirações e suas angústias sob um ponto de vista mais amplo. Parabéns pelo texto tio! Tenho certeza de que esse é um caminho certo!

Jonas F. A. de Deus disse...

Seu Leon, eu gostei muito do texto! É muito bom incentivar as pessoas a ler e a conhecer mais sobre um grande autor, como Tolstói. É uma pena que nos dias de hoje sejam poucos os que se interessam pela leitura dessas obras.

Abraço!