sexta-feira, 5 de setembro de 2008

CHUVAS INESQUECÍVEIS


Agenor Bevilaqua


1936 era o quarto ano de minha morada na Santa Teresinha velha. Durante esse período eu não vira tanta chuva no lugar. No começo de abril desabou na região uma chuvarada enorme, dia e noite, obrigando a todos os moradores a ficarem em suas casas, impossibilitados de buscarem para as mesmas quaisquer coisas de que necessitassem.
Assim é que não pude mandar buscar em Granja a querosene que já não tínhamos para as nossas lamparinas e o farol. Valemo-nos das poucas velas de que dispúnhamos, logo consumidas. No primeiro domingo do mês estávamos no escuro. Não tínhamos onde acender uma fogueira que nos desse calor e uma claridade que muito nos serviriam.
Fechada a bodega, há quatro dias sem fregueses, concentramo-nos na cozinha, com o fogão aceso, fogo alimentado por lenha seca que tínhamos sob um telheiro ligado a casa.
Na Jurema, meus avós Joaquim e Inocência, minha mãe e os filhos Edward, Falb, Rawlinson, Antonio Carlos, Raimundo Ivan e o caçulinha Antônio (por nós chamado de neném), Justina e Luzia, criadas por minha mãe, o rapazinho Chicute criado por meus avós, queimavam naquele domingo o restinho de querosene que tinham e vovô colocou um pavio de algodão em azeite de mamona com isso escapando de enorme escuridão só atingida pelos relâmpagos abertos de vez em quando lá por cima.
Disso tive conhecimento quando, por fim, cessaram chuvas e um sol auspicioso tornou possível a chegada à minha casa, de meu avô e meus irmãos Edward e Falb. Aí, mandei à Granja meu padrinho Raimundo Cândido para trazer 4 latas de 20 litros, cada, do famoso querosene Jacaré usado naquele tempo.
Recordo a nossa reunião forçada lá na cozinha na noite de domingo para segunda, sentados em tábuas apoiadas em tamboretes. Estavam Raimundo Fernandes, morador de meu tio no Riacho de Dentro, tendo ao lado a Chica da Rosa, namorada dele, filha de minha cozinheira, Rosa Gorda, José Cândido, rapazola ajudante de meu avô no trato de animais da propriedade, Osmundo, garoto filho de um morador do vovô no sobradinho, Chico Gato, um parente de minha mãe que chegara todo molhado e a quem dei uma muda de roupa e alguns mais de cujos nomes não me lembro.
Rosa Gorda nos serviu um jantar de arroz com feijão (Baião de dois) a pedaços de Jerimum cozido temperados com sal e pimenta do reino, e logo depois, café adoçado com rapadura.
Eu, dono da casa, de 15 anos de idade, completados em 17 de setembro de 1935, sentia naquela noite o primeiro grande impacto existencial que me fez ter consciência do quanto estava despreparado para enfrentar a vida.
Trovões assustadores sucediam aos relâmpagos, interrompendo a nossa variada conversação e nos assustando. A gente tinha a sensação de que o céu ia desabar por cima de nós. Alguém falou que devíamos fazer uma prece a São Damião.
Situei-me, o possível, próximo ao fogão. Às vezes incomodado pela fumaça. Esforço-me para lembrar-me do teor das nossas conversas.
Eu ouvia muito e falava pouco. A noite rolava até que pelo sono, quase ao amanhecer, fomos parar nas redes armadas pela nossa prestimosa servente, a Rosa Gorda.
José Cândido ia mantendo acesa a lenha no fogão. Pouco falou, aliás, tinha esse costume por habitual. Ligado que era a meu avô, imitava-o, tomando-o por modelo, dizia meu irmão Edward que ele, até no aboio com o gado, fazia tal como vovô. Osmundo tinha uns 13 ou 14 anos. Naquela noite ele falou que a sua idade era aproximadamente a de meu irmão Falb. Chico Gato, filho de Joaquim Balbino, primo de minha mãe, solteiro, andava paquerando a viúva de Felinto De Sousa, morador da Taquara, nosso vizinho. As chuvas prenderam-no na casa da pretendida, tendo vindo a minha bodega adquirir querosene, que estava nos faltando.
Rosa Gorda, minha cozinheira, cinquentona, trabalhadora rural, mãe solteira, estava a meu serviço havia algum tempo. Sua filha Chica, moça de um bom físico, estava acasalada com Raimundo Fernandes, sendo de meu conhecimento, por informações que me chegaram, ser ela uma mulher de grande apetite sexual. Raimundo Fernandes era morador de meu tio Chico Sousa na fazenda deste no Riacho de dentro. Sua presença em minha casa decorria de sua ligação com a Chica, pessoa faladora, muito desembaraçada em suas conversas, usava palavrão e vivia completamente despreocupada com a opinião dos outros sobre isso.
Lembro-me que as conversas foram abertas pela Chica, enquanto tomávamos o café adoçado com rapadura trazido pela Rosa.
- Esse chuveiro não quer mais acabar. Será que estamos tendo um outro dilúvio? Osmundo falou que a pinguela do sobradinho foi levada pelo rio. Agora, para se ir ou vir da Jurema tem que ser a nado. Por isso é que meu padrinho Joaquim e os outros filhos da madrinha Auta não vieram ver o irmão aqui. Devem estar preocupados com o Agenor. Osmundo falou:
- Meu pai disse que o pessoal que fez a ponte de carnaúba no sobradinho fez um serviço muito porco. A água tinha mesmo que levar aquela coisa que a Chica chama pinguela. Não é possível que esse chuveiro não pare. Acho que está na hora de São Pedro dar uma ordem para fechar a torneira do céu.
Eu ia ouvindo os comentários e meus pensamentos estavam nas dificuldades que minha mãe devia estar enfrentando na Jurema. Neném, com cinco anos, não andava muito bem de saúde. Sabia, no entanto, que o garoto tinha plenos cuidados da mãe e que a Justina a ajudava em tudo ao seu alcance.
Chico Gato falou:
- As coisas estão mal reguladas. Um chuveiro como esse não tem cabimento. Uma seca como tivemos no ano passado não tem porque acontecer. Tem tanta gente passando fome enquanto outros estão se empanturrando de comida. O padre, no sermão em São Miguel no ano passado, disse que temos de nos conformar com a vontade de Deus. Segundo ele o sofrimento leva à purificação das almas. Tudo conversa fiada. Invenção do pessoal das Igrejas. O padre é bem tratado pelo Zecadete e o Tomas Gomes quando está no São Miguel. Come do bom e do melhor, se purifica com galinha criada a milho, bebe bom vinho e tem sobremesa de doces a escolher, dos caseiros e dos que vêm enlatados. Depois, no sermão, fala em pecado. Só não oferece um bom jeito da gente viver sem pecar. Não quer que fumemos ou tomemos uma cachacinha pra esquentar os bofes, não quer que a gente dance, não quer que as putas entrem na igreja pra não profanar o recinto sagrado. Enfim, deixa a gente sem nada. Tenho pena desse pobre homem de batina preta a quem ensinaram um monte de besteiras, deixando-o com a ilusão de que é o dono da verdade e que por aí é que vai salvar as pessoas do fogo eterno.
Nunca imaginei que aquele homem tido por muita gente como um maluco perigoso fosse capaz de argumentar tudo que eu ia ouvindo naquela noite de muita chuva, relâmpagos e trovoadas. Num relance de luz em seu rosto dado por um dos relâmpagos, temi estar vendo uma manifestação de um demônio anti-cristão.
A máquina faladora de Chico Gato estava disparada. Ninguém o interrompeu e ele continuou. – Não me meto na vida dos outros. Falo por mim. Gosto de tudo que o padre chama de pecado. Bebo minhas caipirinhas, fumo meus cigarros e em casa vou de cachimbo, quero estar numa boa com a mulher que eu gosto e que gosta de mim, me misturando com ela de todos os jeitos que Deus inventou para isso. E assim por diante. Não vou falar mais pra não que xingar os inventores de pecados.
José Cândido perguntou:
- Chico Gato, tu n]ao tem medo de um castigo de Deus por causa dessas tuas opiniões contra a religião e os padres? De onde fostes tirar essas idéias?
Por sua vez este respondeu:
- Zé, tu sabe que eu sou quase analfabeto. Não leio livros nem jornais e minhas conversas com gente letrada nunca aconteceram. O que ocorre é que eu tenho cabeça para pensar. Prego também tem cabeça, mas não pensa. Há muita gente igual a prego, vai aceitando as marteladas que lhe dão, aceitando-as com satisfação. Que fale o bodegueiro caladão, meu parente, e diga se eu estou certo ou errado.
Respondi:
- Hoje só estou muito bem para ouvir. Falem todos a vontade que eu ouvirei com satisfação. O que importa é que falem o que entendem ser verdade.
Lá pela meia noite, Rosa Gorda nos trouxe batatas doces assadas na brasa. Enquanto comíamos, ouvíamos o tamborilar da chuva no telhado e dávamos mais atenção aos trovões e aos fantásticos relâmpagos.
Foi então que Chico Gato, dirigindo-se a Rosa Gorda, assim falou: Rosa, quero ouvir a tua opinião sobre o que aqui tenho dito. Sei que tens muita experiência de vida e falas sempre a verdade. Fala!
Rosa, de pé, olhando a todos nós como o professor faz na sala de aula dirigindo-se aos alunos:
- Todos vocês sabem que eu, desde os quinze anos de idade, tenho agora 53, dormi com homens em redes, no chão, de qualquer jeito, sempre fazendo o que Deus deixou ser possível entre um homem e uma mulher. Morreram quatro dos meus filhos e só vingou a Chica que aqui está e vocês conhecem. Chamaram-me de puta e ainda assim sou chamada, de mulher da vida, sem vergonha e tudo mais que encontram para me esculhambar. Nunca trai homem algum porque sempre disse a todos que o que é meu é meu e eu dou pra quem eu bem quiser. Não é da conta de ninguém o que eu faço. Pobre e roceira, trabalhei sempre pra me sustentar. Bem ou mal, o que alguns homens me deram, deram porque quiseram. Eu nada pedi, afinal, se usaram o que era meu, foi porque eu quis. É claro que todos eles foram por mim usados. Essa coisa tão cobiçada pelos homens é a mesma coisa que todas as mulheres cobiçam. Sou analfabeta, não sei falar bonito, mas só digo o que sinto. Só me sinto bem falando a verdade, e a verdade é que sempre gostei de homem e meu fogo ainda não se apagou. Só que agora vou ficando com um só, o que eu amo e que me ama. Vocês sabem disso. Passem a ripa em mulheres que desejem e sejam por elas aceitos. Nem vocês nem elas têm qualquer pecado por isso. Podem crer no que eu estou dizendo. O padre que faça bom uso de suas mãozinhas delicadas pensando “não é nela, mas é mesmo que ser nela”. Tá bem?
Chico Gato deliciou-se com a inflamada fala de Rosa Gorda e disse:
Rosa é uma mulher que merece o respeito de todos. Ela só falou a verdade.
Aquela noite tinha mexido muito com a minha cabeça. Mesmo incitado pelos presentes limitei-me a dizer:
- Foi muito bom ouvir vocês. Vou pensar em tudo que disseram e aguardar oportunidade para falar com vocês.
José Cândido, o caladão falou:
- Muito bem! A Rosa acabou de me falar que tem um docinho de mamão para todos nós.
De fato, veio um excelente doce de mamão com pedacinhos de coco, temperado de cravo da índia.
Eram cinco da manhã e a chuva começou a passar. De mãos dadas a Chica e o Raimundo Fernandes foram os primeiros a deixar o recinto.
Mais não falo porque até aqui é o que me lembro.
As redes nos esperavam e nelas ficamos até a hora do almoço que nos foi servido pela incansável Rosa a 1 da tarde.
Ao se ir, Chico Gato perguntou-me: - Tu vais traçando a Rosa e a filha?
Respondi:
Não! A Rosa tem sido pra mim uma espécie de mãe e a filha não me atrai!
Chico, sempre brincalhão disse-me: “Mentiroso”!



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