quarta-feira, 15 de abril de 2009

CELSO FURTADO, UM BRASILEIRO EXEMPLAR

* Leon Bevilaqua

-I-
O nascimento e a morte


A espécie humana vive assediada por males que, em sua maioria, são provocados pelo próprio homem. Por isso é tão importante falar-se das pessoas exemplares, dos que sacrificam suas vidas em benefício de seus semelhantes. Numa época em que o neoliberalismo ainda pontifica, embora já desacreditado e chamado por muitos de neocolonialismo, acarretando males terríveis aos povos dependentes, convém lembrar o nome e a obra de Celso Monteiro Furtado. Ele foi pensador rigoroso que morreu após infarto em sua casa no Rio de Janeiro, na manhã de 20 de novembro de 2004, aos 84 anos, após haver desvendado as causas e conseqüências da secular má gestão do Brasil. Deixou viúva a jornalista e tradutora de obras literárias em espanhol, francês e itailiano, Rosa Freire D’ Aguiar, que em mais de 20 anos do final de sua vida muito o influenciou em suas atividades intelectuais.
Celso Furtado,filho de magistrado e de família adepta da meritocracia, nascido na pequena cidade de Pombal, no sertão árido paraibano, em 26 de julho de 1920, era mais patriota do que nacionalista, tendo cativado leitores do mundo todo com sua prosa erudita e articulada, direcionada para fazer a melhor exposição possível da problemática econômica de sua época.

-II-
O episódio da cassação


Segundo Francisco de Oliveira, sociólogo e assessor de Celso por alguns anos, a dignidade de Celso prescindia, e mais, se horrorizava com os procedimentos de auto-heroização. Ela era tão contundente frente aos padrões predominantes no Brasil que mal se pode acreditar.
Ainda de acordo com Francisco, nos fecundos anos em que trabalhou sob a liderança de Celso, presenciou desde o gesto aparentemente insignificante de partilhar o mesmo quarto num hotel na Bahia, para não estimular gastos perdulários com dinheiro público, até a sua firme e decidida reprimenda ao golpista general Justino Alves Bastos.
No Recife, na aparente calma da tarde de 1° de abril de 1964, aquele militar comandante do quarto exército se queixou ao próprio Furtado de que esse não havia colaborado no transcorrer da tomada do poder pelos militares.
Celso respondeu sem bravatas que era um servidor público, que o exército não solicitasse sua colaboração para um golpe de estado que havia destituído o governo legitimamente eleito, o que repugnava às suas convicções republicanas; logo ele que fora oficial voluntário da FEB.
Desta áspera conversa, o nome de Celso saiu para a primeira e nefasta lista de cassações de direitos políticos.
Poucos cientistas sociais podem se orgulhar de terem visto suas idéias transformarem-se em força social e política; a obra de Celso Furtado passou por essa dura prova da história.
Há a possibilidade, de na sua hora final, Celso ter pensado com amargura no destino da nação à qual dedicou o melhor de suas forças e de seu talento. Nós, seus discípulos, sabemos que nada foi em vão, que suas idéias continuarão a fecundar os intelectos brasileiros, possibilitando ao nosso povo conquistar seus direitos. Nosso futuro será invejado e não composto por ruínas.


-III-
O prestígio e a austeridade


Era tal o seu prestígio que, mesmo após ter sido cassado pelo regime militar de 1964, estando no exílio, seus livros eram adotados pela Universidade de São Paulo nas décadas de 60 e 70 do século passado. Seu livro mais conhecido, Formação Econômica do Brasil, de 1959, editado até hoje pela Companhia Editora Nacional, tornou-se um clássico do qual ainda se recomenda como importante a leitura, tendo sido traduzido e publicado em mais de 50 países.
As vicissitudes que levaram o professor Furtado a passar mais de metade da vida no estrangeiro, fizeram-no perceber e escrever a respeito da posição do Brasil no quadro internacional. Sabia que suas habilidades como caçador de votos eram limitadas e nunca chegou a levar adiante um projeto político.
Ele foi o criador da SUDENE no governo JK, ministro de João Goulart- em 1963, ministro da cultura de Sarney – em 1986, titular de uma cadeira na academia brasileira de letras desde agosto de 1997, jamais tendo requisitado jatinhos para viagens particulares ou cogitado ir até a televisão para levar adiante projetos pessoais. Também nunca fez nenhum tipo de serviço para empresas, nem mesmo pareceres. Íntegro, austero, nunca se deixou seduzir por idéias da moda ou eventuais recompensas pessoais.
Não há dúvida, até a atualidade, Celso é o economista mais importante do Brasil, um homem que pensou com grandeza no desenvolvimento da pátria. Foi um brasileiro marcado pela coerência, pelo compromisso com o desenvolvimento e, por conseqüência, com o bem do povo.



-IV-
Palavras amargas


Mesmo quando modificou diagnósticos ou retificou suas propostas, manteve sempre fidelidade ao seu ideal, de elaborar um pensamento voltado para a ação. Acreditando que as reformas das estruturas levam com mais certeza ao aperfeiçoamento das instituições, optou por uma proposta reformista, de um desenvolvimento econômico socialmente justo. Não considerar este propósito impediria avaliação mais correta do intelectual e sua obra.
Pela gentileza no trato, dificilmente falava palavras amargas, mas ao constatar a nefasta privatização empreendida por Fernando Henrique Cardoso não se conteve e proferiu as seguintes palavras:
“O momento histórico era o começo do governo Fernando Henrique. Faltou imaginação política ou coragem cívica, não sei. Reconheço que ele não esteve à altura do desafio que o Brasil enfrentou. A menos que se diga que faltou a ele percepção da grandeza histórica do momento.” Em novembro de 2001.
Segundo Celso, “Fernando Henrique Cardoso quebrou o Estado e endividou o país até as orelhas.”



-V-
Sem máculas


Como se vê, Celso não foi um economista com as máculas de muitos dos economistas da atualidade, ou seja, não foi fascinado pela economia de mercado, nem teve carreira puramente financeira. Ele sempre acreditou que nosso povo será capaz de fazer de nosso país uma nação digna e civilizada. Sabia da importância do brasileiro, tanto que foi o primeiro economista a dizer que sem cultura não há identidade.
Muitos acreditam que as idéias de Celso, a partir de sua morte, terão repercussão ainda maior do que em sua honesta e densa vida. Nós o perdemos, mas é preciso que guardemos seus ideais.


-VI-
“O Longo amanhecer” –um filme biografia


José Mariane, cineasta brasileiro de talento realizou o documentário “O longo amanhecer”, traçando perfil aprofundado do economista paraibano.
O filme contou com rico material de arquivo, reconstituindo a época de atuação de Furtado.
A espinha dorsal deste documentário está numa longa entrevista feita com Furtado em 2004, cinco meses antes de sua morte.
Apesar da voz vacilante, Furtado mostra-se perfeitamente lúcido, discorrendo sobre seus temas da vida inteira, principalmente a necessidade do Brasil superar as desigualdades sociais em sua rota de desenvolvimento.
A avaliação da obra de Furtado é feita através de entrevistas com intelectuais como Francisco de Oliveira, João Manoel Cardoso de Mello, Antônio Barros de Castro e outros.
As participações mais apaixonadas vêm da economista Maria da Conceição Tavares, que enfatiza a importância do legado do mestre, a quem chama carinhosamente de “velho”.


-VII-
Uma metáfora



Finalizando, para aqueles que ainda se iludem com as belas e falsas palavras do neoliberalismo, queremos transcrever aqui uma impressionante metáfora que mestre Celso Furtado nos deixou, por ser ainda válida:
“As grandes empresas, com suas técnicas avançadas e maciças concentrações de capital, têm o mesmo efeito nas economias subdesenvolvidas que aquelas enormes e exóticas árvores que sugam toda a água e secam uma área inteira...” Por conseguinte, conclui Furtado, “na América Latina o desenvolvimento não pode ser o simples resultado de forças atuantes do mercado. Só uma política consciente e deliberada do governo pode realmente levar ao desenvolvimento.”
Diante desta e muitas outras razões, torna-se evidente que os estados latino-americanos e africanos não podem ser mínimos, como receitam os neoliberais, a não ser que se tenha por objetivo para eles a subordinação e a miséria.


Notas:

¹ Celso furtado, em sua patriótica luta contra a Alca, afirmou que ela ameaçava até mesmo a integridade territorial do Brasil. Os tucanos lutaram muito para que nós fôssemos integrantes da Alca. FHC- em 2001 no Canadá, em reunião preparatória para o estabelecimento da Alca, assegurou aos representantes dos demais países das Américas que nós dela, em breve, passaríamos a ser membro. Esta aberração contra os interesses nacionais só não se concretizou graças ao firme trabalho de Lula, a partir do seu mandato presidencial iniciado em 2003.

² Sabe-se que uma das características fundamentais de um clássico é a possibilidade de infinitas e renovadas leituras. "Formação Econômica do Brasil", vinda a público em janeiro de 1959, 50 anos depois de sua publicação- em 2009- já havia se tornado clássica. Neste ano, ganhou sua primeira edição comemorativa, organizada pela viúva de Celso Furtado, Rosa Freire D'Aguiar Furtado. A introdução dessa edição foi feita por felipe de Alencastro, velho amigo de Celso Furtado. Esta edição comemorativa, em seu conjunto, reune, além do texto de Celso Furtado, a fortuna crítica que se seguiu ao aparecimento da obra que é um dos mais importantes livros de história econômica já escritos. Esta edição foi editada pela Companhia das Letras.

³
a) Em 27/03/2009, foi inaugurada a Escola Municipal Celso Monteiro Furtado - no bairro João Paulo Segundo, em João Pessoa, Paraíba.

b) Em 25/09/2009, No Edifício do BNDS, no centro da cidade do Rio de Janeiro, foi inaugurada a biblioteca Celso Furtado. Ela é digitalizada, tendo aproximadamente 7500 títulos de livros, uma videoteca com entrevistas de Celso Furtado e filmagens dos cursos e seminários realizados pelo Centro Internacional Celso Furtado. Todas as 3 bibliotecas pessoais de Celso Furtado foram transferidas para a biblioteca do prédio do BNDS.

c) O navio petroleiro Celso Furtado foi lançado ao mar em 24 de junho de 2010, sendo a primeira encomenda da Petrobrás ao estaleiro fluminense Mauá, situado em Niterói, próximo à ponte do Rio Niterói. Ele é o casco de número 199 do Estaleiro. Segundo afirmação do presidente Lula, em maio de 2010 - por ocasião do batismo do petroleiro João Cândido, em Recife, ele mesmo escolheu o nome Celso Furtado para o navio de transportes da Petrobrás. Segundo alguns, é um tanto atípico um presidente da República escolher nomes para navios.

d) As recentes homenagens prestadas a Celso Furtado, refletem a revalorização do seu pensamento após a derrocada do pensamento neoliberal evidenciada nas fases da crise econômica manifestadas após 2008.

e) Em 1997, a Editora Paz e Terra publicou, em três volumes, a autobiografia de Celso Furtado. Esta obra possibilita conhecer o perfil de grandes políticos contemporâneos de Celso Furtado, entre eles Juscelino Kubstchek e o Tucano Fernando Henrique Cardoso.

*Economista formado pela USP

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

CHUVAS INESQUECÍVEIS


Agenor Bevilaqua


1936 era o quarto ano de minha morada na Santa Teresinha velha. Durante esse período eu não vira tanta chuva no lugar. No começo de abril desabou na região uma chuvarada enorme, dia e noite, obrigando a todos os moradores a ficarem em suas casas, impossibilitados de buscarem para as mesmas quaisquer coisas de que necessitassem.
Assim é que não pude mandar buscar em Granja a querosene que já não tínhamos para as nossas lamparinas e o farol. Valemo-nos das poucas velas de que dispúnhamos, logo consumidas. No primeiro domingo do mês estávamos no escuro. Não tínhamos onde acender uma fogueira que nos desse calor e uma claridade que muito nos serviriam.
Fechada a bodega, há quatro dias sem fregueses, concentramo-nos na cozinha, com o fogão aceso, fogo alimentado por lenha seca que tínhamos sob um telheiro ligado a casa.
Na Jurema, meus avós Joaquim e Inocência, minha mãe e os filhos Edward, Falb, Rawlinson, Antonio Carlos, Raimundo Ivan e o caçulinha Antônio (por nós chamado de neném), Justina e Luzia, criadas por minha mãe, o rapazinho Chicute criado por meus avós, queimavam naquele domingo o restinho de querosene que tinham e vovô colocou um pavio de algodão em azeite de mamona com isso escapando de enorme escuridão só atingida pelos relâmpagos abertos de vez em quando lá por cima.
Disso tive conhecimento quando, por fim, cessaram chuvas e um sol auspicioso tornou possível a chegada à minha casa, de meu avô e meus irmãos Edward e Falb. Aí, mandei à Granja meu padrinho Raimundo Cândido para trazer 4 latas de 20 litros, cada, do famoso querosene Jacaré usado naquele tempo.
Recordo a nossa reunião forçada lá na cozinha na noite de domingo para segunda, sentados em tábuas apoiadas em tamboretes. Estavam Raimundo Fernandes, morador de meu tio no Riacho de Dentro, tendo ao lado a Chica da Rosa, namorada dele, filha de minha cozinheira, Rosa Gorda, José Cândido, rapazola ajudante de meu avô no trato de animais da propriedade, Osmundo, garoto filho de um morador do vovô no sobradinho, Chico Gato, um parente de minha mãe que chegara todo molhado e a quem dei uma muda de roupa e alguns mais de cujos nomes não me lembro.
Rosa Gorda nos serviu um jantar de arroz com feijão (Baião de dois) a pedaços de Jerimum cozido temperados com sal e pimenta do reino, e logo depois, café adoçado com rapadura.
Eu, dono da casa, de 15 anos de idade, completados em 17 de setembro de 1935, sentia naquela noite o primeiro grande impacto existencial que me fez ter consciência do quanto estava despreparado para enfrentar a vida.
Trovões assustadores sucediam aos relâmpagos, interrompendo a nossa variada conversação e nos assustando. A gente tinha a sensação de que o céu ia desabar por cima de nós. Alguém falou que devíamos fazer uma prece a São Damião.
Situei-me, o possível, próximo ao fogão. Às vezes incomodado pela fumaça. Esforço-me para lembrar-me do teor das nossas conversas.
Eu ouvia muito e falava pouco. A noite rolava até que pelo sono, quase ao amanhecer, fomos parar nas redes armadas pela nossa prestimosa servente, a Rosa Gorda.
José Cândido ia mantendo acesa a lenha no fogão. Pouco falou, aliás, tinha esse costume por habitual. Ligado que era a meu avô, imitava-o, tomando-o por modelo, dizia meu irmão Edward que ele, até no aboio com o gado, fazia tal como vovô. Osmundo tinha uns 13 ou 14 anos. Naquela noite ele falou que a sua idade era aproximadamente a de meu irmão Falb. Chico Gato, filho de Joaquim Balbino, primo de minha mãe, solteiro, andava paquerando a viúva de Felinto De Sousa, morador da Taquara, nosso vizinho. As chuvas prenderam-no na casa da pretendida, tendo vindo a minha bodega adquirir querosene, que estava nos faltando.
Rosa Gorda, minha cozinheira, cinquentona, trabalhadora rural, mãe solteira, estava a meu serviço havia algum tempo. Sua filha Chica, moça de um bom físico, estava acasalada com Raimundo Fernandes, sendo de meu conhecimento, por informações que me chegaram, ser ela uma mulher de grande apetite sexual. Raimundo Fernandes era morador de meu tio Chico Sousa na fazenda deste no Riacho de dentro. Sua presença em minha casa decorria de sua ligação com a Chica, pessoa faladora, muito desembaraçada em suas conversas, usava palavrão e vivia completamente despreocupada com a opinião dos outros sobre isso.
Lembro-me que as conversas foram abertas pela Chica, enquanto tomávamos o café adoçado com rapadura trazido pela Rosa.
- Esse chuveiro não quer mais acabar. Será que estamos tendo um outro dilúvio? Osmundo falou que a pinguela do sobradinho foi levada pelo rio. Agora, para se ir ou vir da Jurema tem que ser a nado. Por isso é que meu padrinho Joaquim e os outros filhos da madrinha Auta não vieram ver o irmão aqui. Devem estar preocupados com o Agenor. Osmundo falou:
- Meu pai disse que o pessoal que fez a ponte de carnaúba no sobradinho fez um serviço muito porco. A água tinha mesmo que levar aquela coisa que a Chica chama pinguela. Não é possível que esse chuveiro não pare. Acho que está na hora de São Pedro dar uma ordem para fechar a torneira do céu.
Eu ia ouvindo os comentários e meus pensamentos estavam nas dificuldades que minha mãe devia estar enfrentando na Jurema. Neném, com cinco anos, não andava muito bem de saúde. Sabia, no entanto, que o garoto tinha plenos cuidados da mãe e que a Justina a ajudava em tudo ao seu alcance.
Chico Gato falou:
- As coisas estão mal reguladas. Um chuveiro como esse não tem cabimento. Uma seca como tivemos no ano passado não tem porque acontecer. Tem tanta gente passando fome enquanto outros estão se empanturrando de comida. O padre, no sermão em São Miguel no ano passado, disse que temos de nos conformar com a vontade de Deus. Segundo ele o sofrimento leva à purificação das almas. Tudo conversa fiada. Invenção do pessoal das Igrejas. O padre é bem tratado pelo Zecadete e o Tomas Gomes quando está no São Miguel. Come do bom e do melhor, se purifica com galinha criada a milho, bebe bom vinho e tem sobremesa de doces a escolher, dos caseiros e dos que vêm enlatados. Depois, no sermão, fala em pecado. Só não oferece um bom jeito da gente viver sem pecar. Não quer que fumemos ou tomemos uma cachacinha pra esquentar os bofes, não quer que a gente dance, não quer que as putas entrem na igreja pra não profanar o recinto sagrado. Enfim, deixa a gente sem nada. Tenho pena desse pobre homem de batina preta a quem ensinaram um monte de besteiras, deixando-o com a ilusão de que é o dono da verdade e que por aí é que vai salvar as pessoas do fogo eterno.
Nunca imaginei que aquele homem tido por muita gente como um maluco perigoso fosse capaz de argumentar tudo que eu ia ouvindo naquela noite de muita chuva, relâmpagos e trovoadas. Num relance de luz em seu rosto dado por um dos relâmpagos, temi estar vendo uma manifestação de um demônio anti-cristão.
A máquina faladora de Chico Gato estava disparada. Ninguém o interrompeu e ele continuou. – Não me meto na vida dos outros. Falo por mim. Gosto de tudo que o padre chama de pecado. Bebo minhas caipirinhas, fumo meus cigarros e em casa vou de cachimbo, quero estar numa boa com a mulher que eu gosto e que gosta de mim, me misturando com ela de todos os jeitos que Deus inventou para isso. E assim por diante. Não vou falar mais pra não que xingar os inventores de pecados.
José Cândido perguntou:
- Chico Gato, tu n]ao tem medo de um castigo de Deus por causa dessas tuas opiniões contra a religião e os padres? De onde fostes tirar essas idéias?
Por sua vez este respondeu:
- Zé, tu sabe que eu sou quase analfabeto. Não leio livros nem jornais e minhas conversas com gente letrada nunca aconteceram. O que ocorre é que eu tenho cabeça para pensar. Prego também tem cabeça, mas não pensa. Há muita gente igual a prego, vai aceitando as marteladas que lhe dão, aceitando-as com satisfação. Que fale o bodegueiro caladão, meu parente, e diga se eu estou certo ou errado.
Respondi:
- Hoje só estou muito bem para ouvir. Falem todos a vontade que eu ouvirei com satisfação. O que importa é que falem o que entendem ser verdade.
Lá pela meia noite, Rosa Gorda nos trouxe batatas doces assadas na brasa. Enquanto comíamos, ouvíamos o tamborilar da chuva no telhado e dávamos mais atenção aos trovões e aos fantásticos relâmpagos.
Foi então que Chico Gato, dirigindo-se a Rosa Gorda, assim falou: Rosa, quero ouvir a tua opinião sobre o que aqui tenho dito. Sei que tens muita experiência de vida e falas sempre a verdade. Fala!
Rosa, de pé, olhando a todos nós como o professor faz na sala de aula dirigindo-se aos alunos:
- Todos vocês sabem que eu, desde os quinze anos de idade, tenho agora 53, dormi com homens em redes, no chão, de qualquer jeito, sempre fazendo o que Deus deixou ser possível entre um homem e uma mulher. Morreram quatro dos meus filhos e só vingou a Chica que aqui está e vocês conhecem. Chamaram-me de puta e ainda assim sou chamada, de mulher da vida, sem vergonha e tudo mais que encontram para me esculhambar. Nunca trai homem algum porque sempre disse a todos que o que é meu é meu e eu dou pra quem eu bem quiser. Não é da conta de ninguém o que eu faço. Pobre e roceira, trabalhei sempre pra me sustentar. Bem ou mal, o que alguns homens me deram, deram porque quiseram. Eu nada pedi, afinal, se usaram o que era meu, foi porque eu quis. É claro que todos eles foram por mim usados. Essa coisa tão cobiçada pelos homens é a mesma coisa que todas as mulheres cobiçam. Sou analfabeta, não sei falar bonito, mas só digo o que sinto. Só me sinto bem falando a verdade, e a verdade é que sempre gostei de homem e meu fogo ainda não se apagou. Só que agora vou ficando com um só, o que eu amo e que me ama. Vocês sabem disso. Passem a ripa em mulheres que desejem e sejam por elas aceitos. Nem vocês nem elas têm qualquer pecado por isso. Podem crer no que eu estou dizendo. O padre que faça bom uso de suas mãozinhas delicadas pensando “não é nela, mas é mesmo que ser nela”. Tá bem?
Chico Gato deliciou-se com a inflamada fala de Rosa Gorda e disse:
Rosa é uma mulher que merece o respeito de todos. Ela só falou a verdade.
Aquela noite tinha mexido muito com a minha cabeça. Mesmo incitado pelos presentes limitei-me a dizer:
- Foi muito bom ouvir vocês. Vou pensar em tudo que disseram e aguardar oportunidade para falar com vocês.
José Cândido, o caladão falou:
- Muito bem! A Rosa acabou de me falar que tem um docinho de mamão para todos nós.
De fato, veio um excelente doce de mamão com pedacinhos de coco, temperado de cravo da índia.
Eram cinco da manhã e a chuva começou a passar. De mãos dadas a Chica e o Raimundo Fernandes foram os primeiros a deixar o recinto.
Mais não falo porque até aqui é o que me lembro.
As redes nos esperavam e nelas ficamos até a hora do almoço que nos foi servido pela incansável Rosa a 1 da tarde.
Ao se ir, Chico Gato perguntou-me: - Tu vais traçando a Rosa e a filha?
Respondi:
Não! A Rosa tem sido pra mim uma espécie de mãe e a filha não me atrai!
Chico, sempre brincalhão disse-me: “Mentiroso”!



AS VINHAS DA IRA, UM LIVRO IMPRESCINDÍVEL



Leon Bevilaqua



Em 1939, os bibliotecários da St. Louis Public library fizeram um ato de repúdio ao livro As Vinhas da Ira, que acabara de ser lançado, queimando-o numa fogueira pública. O livro era de autoria de John Steinbeck, brilhante escritor norte-americano que nascera na Califórnia no ano de 1902 e morreria bem depois em Nova York – no ano de 1968. Essa fogueira serviu para que os oradores advertissem o restante dos escritores norte –americanos de que eles não tolerariam linguagem por eles classificada de obscena, nem doutrinas que não estivessem bem sancionadas pelo pensamento pró –capitalista.
Parece que não adiantou muito esta manifestação de intransigência. O livro, no nosso terceiro milênio, continua a ser bastante lido, sendo um documento literário importante de como viveu a população norte-americana na década de 1930. Há um consenso em nossos dias, na obra só há uma obscenidade: o sofrimento e abandono a que esteve sujeito largo contingente populacional daquele país no período focalizado.
Na década de 30, foram inúmeras as desventuras a que estiveram sujeitos os trabalhadores norte americanos urbanos e rurais. Existiam programas federais específicos para feri-lo. Assim, nesta década, o Agricultural Adjustment Act liberou a produção de algodão e reduziu a necessidade de contratação de braços, o que foi bom para o proprietário e um desastre para o homem que perdia seu emprego. Em seu cerne, a política de Washington era orientada em favor do fazendeiro próspero e tinha o perverso efeito de excluir do negócio os pequenos produtores.
No fim da década de 20, os Estados Unidos mergulharam na “grande depressão”. As ações viraram nada e a economia do país foi à bancarrota. As populações urbanas e rurais entraram na mais absoluta miséria, sem trabalho ou qualquer outra perspectiva. Multidões de origem rural e urbana andavam a esmo à procura de pão, fazendo se destacarem entidades religiosas como o exército da salvação (oficialmente fundado em 1878), que distribuía uma sopa rala nas frias noites de Nova Iorque e outras localidades. Ao relento, o povo se esquentava em fogos improvisados colocados em latões de lixo pelas ruas. Era a visão do inferno.
A miséria que se instalou na então nação mais rica e próspera do planeta perduraria até o início da Segunda Guerra Mundial, quando a economia voltou a se recuperar graças em parte ao esforço bélico para enfrentar o nazismo que fora comandado pelo presidente Roosevelt, o que criou um mercado de armas que se transformou num dos principais produtos de exportação norte- americanos.

Em linhas gerais, na obra é traçado um importante painel sócio-econômico dos EUA, após a derrocada em 1929. Para delinear esse painel, Steinbeck conta a saga da família Joad em direção à Califórnia, trilhando a famosa estrada 66, principal rota da população em êxodo do leste para o oeste americano.
No livro, Steinbeck assim de refere àquela estrada:

“A estrada 66 é a rota principal das populações em êxodo. Estrada 66-a longa faixa de concreto que corta as terras, ondulando suavemente, para cima e para baixo, no mapa, do Mississipi a Bakersfield-atravessa as terras vermelhas e as pardas, galgando as elevações, cruzando as montanhas rochosas e penetrando no amplo e terrificante deserto,e , cruzando o deserto, torna a entrar nas regiões montanhosas até alcançar os férteis vales da Califórnia.
A 66 é o caminho de um povo em fuga, a estrada dos refugiados das terras da poeira e do pavor, do trovejar dos tratores que sangram o chão, da invasão lenta do deserto pelas bandas do norte, dos ventos ululantes que vêm em rajadas do Texas, das inundações que não trazem benefícios às terras e ainda acabam com o pouco de bom que nelas restava.
De tudo isso, os homens fugiam, e encontravam-se na estrada 66, vindos dos caminhos tributários, dos caminhos esburacados e lamacentos que cortavam todo o interior. A 66 é estrada-mãe, a estrada do êxodo.”

Ao empreender a leitura desse livro, encontramos um autor que acima de tudo amou a humanidade e seus valores mais altruístas, um homem que, nesse livro, criou alguns dos personagens mais generosos da literatura americana, entre eles a mãe, Tom e Casy.
Para quem quer conhecer a vida norte-americana no século XX, bem como certos efeitos da mecanização trazidos pelos tratores ao campo dos EUA, esse é um livro imprescindível e de leitura prazerosa.

Notas:
1)A Fox (Empresa cinematográfica norte-americana) fez um filme em preto e branco baseado no livro as vinhas da ira. Este filme, embora não tenha incorporado a maioria das grandes qualidades do livro, foi vencedor de dois oscars em 1940, apresentando características bastante interessantes: estética e dinâmica dos tempos do cinema mudo, embora seja sonorizado. Os protagonistas do filme foram Henry Fonda, Jane Darwell e John Carracine. O roteiro foi de Nunnally Johnson, tendo sido dirigido por John Ford e produzido por Darryl F. Zanuck.
2)Alguns falam da analogia entre os trabalhadores sem terra brasileiros e os retirantes cuja história o livro, As Vinhas da Ira, conta. Há certa pertinência na comparação das misérias vividas por brasileiros da atualidade e os pobres norte americanos da década de 30. Ambos os tipos de pobres foram discriminados.
3)A route 66 foi sendo gradualmente substituída nos anos 70 e 80 do século passado pelas chamadas Interstate highway, as quais são estradas modernas.
4)O velho traçado da route 66 ainda existe em vários pontos, sendo preservado como monumento nacional. Tal traçado pode ser ainda percorrido por veículos. No entanto, ele já não figura nos mapas de estradas de ligação entre estados desde 1985.
5)Interessante notar que muitos críticos literários encontram semelhanças entre a epopéia de Joade e o exôdo bíblico. É certo que as semelhanças existem, pelo menos no que tange ao objetivo final, a terra prometida.

A INDEPENDÊNCIA


Heidy Saori

Sabe-se que o processo que resultou na emancipação política do Brasil em relação ao reino português é denominado Independência do Brasil, datada de 7 de setembro de 1822 quando ocorreu o episódio do chamado "Grito do Ipiranga". Segundo a história oficial, às margens do riacho Ipiranga (atual cidade de São Paulo), o Príncipe Regente D. Pedro I , bradou perante a sua comitiva: "Independência ou Morte!".
Entretanto, cabe aqui uma análise menos ingênua de um processo que foi, na verdade, um “arranjo político”. Tal independência não representou uma ruptura com o passado colonial. A nossa autonomia não foi fundamentada por uma base econômica sólida, uma vez que deixamos de ser dominados por portugueses e caímos nas graças dos ingleses.
O primeiro país a reconhecer a nossa independência foram os Estados Unidos, em 1824. Portugal só a reconheceu em 1825 mediante o pagamento de 2 milhões de libras esterlinas e o título de imperador honorário do Brasil para D. João VI. É fato que o Brasil não possuía tamanha quantia que lhe foi emprestada pela Inglaterra. Esta, em troca do reconhecimento da autonomia brasileira, obteve a renovação dos Tratados Comerciais de 1810 ( estabelecia a taxa de 15% para a importação de mercadorias inglesas) e a promessa de extinção do tráfico de escravos negros para o Brasil.
D. Pedro I foi Imperador durante o período conhecido por Primeiro Reinado. Sua abdicação ao trono ocorreu em 1831, quando retornou a Portugal. Os motivos foram vários: estava cada vez mais impopular uma vez que havia dissolvido a Assembléia Nacional Constituinte e outorgado a Constituição de 1824. Além disso, enfrentava desgastes com a Guerra da Cisplatina, uma vez que não conseguiu manter a Província da Cisplatina(Uruguai), anexada em 1817 no governo joanino, ao Brasil. A brigas entre portugueses e brasileiros eram muitas, culminando na famosa noite das garrafadas em que brasileiros revoltosos atacaram com pedras e garrafas uma festa destinada ao governante. Foi, na verdade, uma disputa entre os aliados do partido português - favoráveis ao imperador - e os liberais do partido brasileiro - opositores ao mesmo. Esse episódio teve importância primordial na crise política que resultaria na abdicação de D. Pedro I em 7 de abril.
D. Pedro deixou como herdeiro seu filho D. Pedro de Alcântara que contava com 5 anos. Dessa forma, o Brasil adentrou no Período Regencial, já que isso era o que a Constituição previa. D. Pedro I faleceu em 1834 e o jovem D.Pedro de Alcântara, com ajuda do partido Progressista, teve sua emancipação concedida e subiu ao trono em 1840, com apenas 14,5 anos. Iniciava-se o Segundo Reinado.

EDITORIAL

O ano de 2008 é marcado por uma série de acontecimentos de suma relevância, tais quais como a comemoração dos 100 anos da imigração japonesa, centenário do grande Machado de Assis, Olimpíadas em Pequim e assuntos geopolíticos como conflito entre Geórgia e Russa. E é neste ano de tantos acontecimentos e datas fechadas que lançamos o “Letras do Mato Grosso do Sul”, jornal de mesma linhagem que o já conhecido “Jornadas Culturais”.

Foi em 18 de junho de 1908, que chegou ao porto de Santos o Kasato Maru, navio que trouxe 165 famílias de japoneses. A grande parte destes imigrantes era formada por camponeses de regiões pobres do norte e sul do Japão, que vieram trabalhar nas prósperas fazendas de café do oeste do estado de São Paulo.
Jornalista, cronista, contista, romancista, poeta e teatrólogo, Joaquim Maria de Machado de Assis nasceu em 21 de junho de 1839, no Rio de Janeiro, cidade onde também faleceu, em 29 de setembro de 1908. Filho de um operário e uma dona de casa, perdeu a mãe muito cedo e, como não teve condições de realizar estudos regulares, foi um autodidata. É o fundador da cadeira nº 23 da Academia Brasileira de Letras (ABL), tendo sido seu primeiro presidente, cargo que ocupou por mais de dez anos.
A crise na região do Cáucaso começou quando a Geórgia decidiu impor a força na região separatista da Ossétia do sul e a Rússia contra-atacou invadindo o território georgiano.
O Letras do Mato Grosso do Sul é inaugurado no dia 5 de setembro durante a estada de Agenor Bevilaqua na cidade de Campo Grande, capital do estado.
Convido a todos que desejarem a se sentirem à vontade para escrever seus próprios textos críticos sobre os mais variados assuntos, os quais poderão ser incluídos nos próximos números.